A LÚMPENE E ARRUACEIRA… INTERNET

Como em qualquer evoluída democracia e num Estado de Direito consolidado, o Presidente da Re(i)pública de Angola, João Lourenço, certamente em consonância com o Presidente do MPLA, João Lourenço, e com o Titular do Poder Executivo, João Lourenço, alertou hoje para os “fins maléficos” (e, é claro, arruaceiros) da Internet, apelando aos jovens para que evitem propagar boatos e mentiras e aos partidos (“burros, bandidos e lúmpenes”) que se abstenham de os usar contra os adversários políticos e contra a pátria (do assassino Agostinho Neto).

J oão Lourenço, que discursava hoje na abertura da Angotic, Fórum Internacional de Tecnologias de Informação e Comunicação, introduziu uma vertente política no seu discurso sobre tecnologias, apontando os bons e maus usos das plataformas digitais, que podem ser usadas para incitar motins e golpes de Estado. Se calhar também podem ser usadas pelos ditadores e carrascos para branquear as suas acções. Ou não?

Sobre as plataforma digitais, “uma importante ferramenta de trabalho e comunicação”, João Lourenço considerou que podem também ser usadas para fins maléficos e criminosos, para denegrir pessoas ou instituições, bem como o crime organizado e organização de motins, rebeliões e golpes de estado.

“O problema não é das tecnologias e plataformas digitais, e sim do bom ou mau uso dado pelos utilizadores, que devem ser educados desde tenra idade que uma ferramenta feita para produzir riqueza e saber pode ser usada para destruir, dividir, semear a discórdia e criar o caos”, alertou.

O chefe do executivo fez recomendações sobre o uso da Internet e redes sociais que devem ser usadas sobretudo para a “superação académica, cultural e profissional” ou para a promoção de negócios. Nunca, é claro, para preservar a verdade ou denunciar quem obriga um povo a aprender a viver sem… comer.

O general João Lourenço falou também sobre os jovens, sublinhando que o executivo do MPLA trabalha para a sua “educação moral e cívica” e para a “defesa dos mais nobres valores da cultura e civilização cristã”, o respeito da família e do próximo, da criança e do velho, dos símbolos nacionais e da pátria. Em caso de dúvida, basta perguntar – por exemplo – aos 20 milhões de angolanos pobres ou aos cinco milhões de crianças angolanas que estão fora do sistema escolar.

“Apelamos, por isso, aos nossos jovens a não desperdiçar o seu tempo precioso com coisas negativas como propagação de boatos, da mentira intencionalmente forjada, da intolerância politica e do ódio”, exortou o novo filósofo do MPLA que, em matéria de Internet, rivaliza com o general Bento Kangamba.

Deixou também avisos aos partidos políticos para que se “abstenham de radicalizar os jovens, usando-os como armas de arremesso contra os seus adversários políticos e, muito menos, contra a pátria”. Isto porque, como se sabe, esse é um monopólio exclusivo do MPLA.

O general João Lourenço destacou a importância das redes de banda larga, uma ferramenta fundamental para garantir aos cidadãos acesso à sociedade de informação, e realçou a necessidade de a Internet estar ao alcance da maior parte dos cidadãos.

Em Angola, continuou, o sector das telecomunicações continua em franco crescimento. A colocação em órbita do satélite Angosat II, ligações terrestres e submarinas em fibra óptica para Cabinda, construção de um satélite de observação da terra, expansão da banda larga em fibra óptica e participação no consórcio internacional do cabo submarino de fibra óptica “2 Africa” foram alguns dos exemplos que deu.

Além disso, entre 2021 e o primeiro trimestre de 2023 registou-se um crescimento de 55% do serviço de telefonia móvel, actualmente com uma taxa de penetração de 71%, enquanto a taxa de crescimento do acesso a Internet foi de cerca de 20%.

Governo quer controlar as redes sociais

E então como é que se compagina tudo isto com a intenção, expressa pelo governo angolano do MPLA (no poder desde 1975), de controlar as redes sociais, onde diz ser “questionado” e “ridicularizado”?

Em 2016, de acordo com Gustavo Cardoso, docente do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), “independentemente de estarmos a olhar para democracias ou para regimes totalitários, em termos de protestos e em termos das pessoas tentarem fazer ouvir a sua voz, cada vez mais as redes sociais são uma arma de eleição”.

Em Angola mas também no estrangeiro, as redes sociais têm sido utilizadas para criticar a governação do país, liderado há 48 anos pelo MPLA, ou para convocar manifestações e outras acções de protesto, bem como para divulgar abusos dos direitos humanos pelas autoridades.

Em Janeiro de 2016, o secretariado do ‘bureau’ político do Comité Central do MPLA sustentou que o partido e o executivo têm vindo a ser “questionados” e “ridicularizados” nas redes sociais por “supostos militantes, amigos ou simpatizantes” com vista a confundir os internautas”, o que reforça o desagrado manifestado no final de 2015 pelo então Presidente José Eduardo dos Santos.

“Seja em Angola, na China, no Brasil, em Portugal, na Espanha ou nos EUA, em qualquer ponto do globo onde exista conflitualidade política, em democracia ou fora dela, existe a utilização das redes sociais como forma de oposição daqueles que têm menos poder face aos que têm mais poder”, reforçou o docente do ISCTE-IUL.

Em entrevista à agência Lusa (Janeiro de 2016), Gustavo Cardoso assinalou que, em Angola, a Internet é sobretudo utilizada por “uma elite da população, por quem tem dinheiro para fazê-lo, independentemente das competências culturais e educacionais” e que, mais do que um embate entre quem está num governo e quem o contesta, este tipo de atitude do poder é reveladora de um desfasamento cultural.

“No caso de Angola – que não é diferente do de outros países – aquilo que vemos é que há duas culturas completamente diferentes: a das pessoas que estão no poder e a da sociedade. Enquanto a sociedade, na maior parte dos países, adoptou efectivamente as regras de funcionamento de uma sociedade em rede, quem está no poder vive ainda e essencialmente numa era em que o meio de comunicação que influenciava a forma de estar e de agir das pessoas era a televisão”, explicou.

Daí o Poder acreditar que “consegue lidar com a Internet como se se tratasse de um controlo da imprensa”, sem compreender que, ao instaurar mecanismos de censura, “cria uma situação de total disfuncionalidade” social, pois a Internet e as redes sociais passaram a constituir um recurso comum no quotidiano, declarou Gustavo Cardoso.

“Para as pessoas que fazem uso das redes sociais para contestar alguma coisa”, elas também funcionam como “ferramenta de expressão dos gostos, do que se gosta de ler, ouvir e ver, e canal de comunicação com os amigos”, exemplificou, considerando que “compatibilizar isso com uma cultura com 20 ou 30 anos que está no poder e olha com essa visão para o que a rodeia é muito complicado”.

Portanto, há dois universos que não falam a mesma língua, “e não é apenas porque uns querem mais democracia enquanto outros consideram que a distribuição de poder e a lógica de funcionamento de um determinado regime político num determinado país estão corretas e dispensam mudanças, é porque são duas formas completamente distintas de utilizar uma tecnologia”, acrescentou.

Numa perspectiva mais internacional, o docente referiu ainda que, “no caso chinês, há a particularidade de as redes sociais serem toleradas para que os cidadãos denunciem casos de corrupção entre as elites que gerem as diferentes zonas do país”, enquanto, no Brasil, “as mais recentes manifestações contra e a favor da presidente Dilma, as do tempo da Copa e as que contestaram o aumento do preço dos transportes foram todas organizadas através do Twitter e do Facebook”.

“Hoje em dia, as redes sociais são fundamentais para criar alternativas democráticas, combater regimes autoritários e fazer ouvir a voz das pessoas quando elas não se sentem representadas pelos políticos”, afirmou Gustavo Cardoso, recordando que a utilização da Internet em geral e das redes sociais em particular já desencadeou a ira do poder no Irão ou no Uzbequistão.

No Irão, em 2009, durante as eleições presidenciais, “o primeiro a ser visado foi o Twitter, depois ‘fecharam’ a Internet e, em seguida, tentaram impedir a utilização de redes de telemóvel para o envio de sms”, o que levou as pessoas a “dirigirem-se para autocarros, cinemas e outros locais onde há multidões, de modo a passarem, via Bluetooth, panfletos electrónicos, o que funciona como uma distribuição de panfletos tradicional mas torna extremamente difícil saber quem foi o remetente”, contou o investigador.

A tentativa de controlo verificou-se também no Uzbequistão em 2014, quando se tornaram mais ‘abrangentes’ as leis draconianas que penalizavam os jornalistas independentes: “Como não havia o equivalente para a Internet, quem utilizasse blogues ou microblogging – como o Twitter – era equiparado a jornalista, podendo assim ser controlado através da aplicação de pesadas penas”, contou à Lusa.

Gustavo Cardoso evocou ainda os confrontos na Turquia, referindo que, “enquanto a repressão contra as pessoas que ocupavam Gezi Park era levada ao auge, na televisão turca passava um documentário sobre pinguins”, pelo que “a única alternativa foi passar a palavra sobre aquilo que estava a acontecer e organizar as pessoas através das redes sociais”.

Kangamba – o guru de João Lourenço (na Internet)

Por sua vez, o general Bento dos Santos Kangamba interveio publicamente por diversas vezes para defender a ideia de que a Internet não mais deve ser usada para criticar a sua pessoa, o presidente e os dirigentes.

Segundo Rafael Marques, “o nosso Kangamba apresentou apenas dois motivos defensáveis para recorrer à Internet. Em primeiro lugar, para o estudo, ou seja, para aumentar os conhecimentos, na linha daquilo que o presidente defendeu no seu discurso de fim de ano. Em segundo lugar, para falar bem dos dirigentes, contribuindo para a tranquilidade emocional das suas famílias”.

Nada melhor do que ouvir os principais trechos da intervenção do general Bento Kangamba. “Jornalistas de bem e jornalistas de mau amor [humor], quando acordam, querem fazer caricaturas do presidente e dos dirigentes e falar mal na Internet, lançar”, acusava o general. “É claro que é mau isso quando tivermos que falar de um dirigente temos de falar bem dos seus efeitos [feitos]. Nós não temos que falar contra. Isto é estarmos a atingir a sua família”, adiantava Kangamba.

Em 1994, o presidente descreveu o modelo ideal da comunicação social para Angola, citando um órgão estatal. “O trabalho da Angop é o que é menos criticado. Às vezes parece que nem sequer existe, o que pode querer dizer que estão a fazer bem o seu trabalho.”

O general Kangamba não entende bem de que modo a discrição total favorece o seu chefe, e por isso deixa o seu conselho: “Continuo a vos dizer que a Internet veio, é aquilo que o presidente disse, a Internet veio para as pessoas estudar, para investigar, melhorar o comportamento do seu estudo e aprender. Não é para entrar na vida das pessoas.”

Estudar também pode ser perigoso. Foi o que aconteceu aos activistas. Estavam a estudar ideias contrárias ao poder do presidente e foram presos. Há que definir aquilo que os jovens devem estudar através da Internet.

“Se vocês verem, falam mais [na internet] do presidente, falam mais do Bento Kangamba, falam mais dos dirigentes de todo o tamanho”, lamentava o então também secretário do MPLA para a Organização e Mobilização Periférica e Rural em Luanda.

Para Kangamba, a Internet seria o meio ideal se os críticos “falassem daquilo que nós [dirigentes do MPLA] contribuímos no país. Era melhor, mas não falam”.

“Isso que nós fizemos, tanto tempo que nós fizemos, mas as pessoas falam daquilo que nós fizemos, inventam coisas, peças montadas, uma cabeça que o corpo não é meu. Mete a minha cabeça no corpo que não é meu. Cabeça que não é meu mete o meu corpo”, denunciava o dirigente do regime.

Em parte por causa desses abusos contra a sua pessoa – “esse tipo de coisa” como diz – “é que o presidente falou [sobre a internet] na sua mensagem [de fim de ano]”.

Folha 8 com Lusa

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